No próximo dia seis de setembro, em Barcelona, na Espanha, a multinacional britânica Rayner, que fabricou a primeira lente intraocular do mundo (implantada pelo inglês Harold Ridley, em 1949), lançará no mercado europeu uma lente intraocular multifocal para cirurgia de catarata que promete revolucionar o setor, com tecnologia desenvolvida por um grupo de pesquisadores liderado por um oftalmologista brasileiro.
Batizada de Galaxy, a lente intraocular é fruto do trabalho liderado pelo oftalmologista João Marcelo Lyra, fundador da empresa Logos Bioscience, que investiu recursos próprios na formação de uma equipe de cientistas da área de Computação, Física Óptica e da Oftalmologia para criar uma lente
com formato inovador capaz de reduzir em mais de 50% as distorções visuais mais comuns encontradas em lentes intraoculares multifocais – como os “halos”, anéis de luz que aparecem em torno de fontes luminosas e dificultam a direção noturna, por exemplo.
O salto tecnológico da nova lente desenvolvida no Brasil começou pelo design. Enquanto as lentes intraoculares multifocais tradicionais têm, em geral, formato concêntrico, em camadas dispostas uma dentro da outra como círculos de um alvo (cada uma projetada para ajudar a ver a diferentes distâncias – perto, intermediário e longe), o oftalmologista João Marcelo Lyra, inspirado pela ilustração da capa de um livro, teve a ideia de desenvolver uma lente no formato espiral, semelhante ao espiral das galáxias (daí o nome Galaxy), em busca de uma transição mais suave entre as zonas de visão.
Em vez de se contentar em escrever um artigo científico propondo o novo formato da lente, a experiência prévia do médico e cirurgião trabalhando por mais de 15 anos ao lado de cientistas da computação no desenvolvimento de softwares de apoio à decisão médica com base em Inteligência Artificial lhe deu confiança para investir recursos próprios na formação de uma equipe interdisciplinar capaz de produzir um protótipo da nova lente no Brasil.
Além de unir especialistas na área de Computação e Inteligência Artificial, como o doutor e pesquisador Aydano Machado, da Universidade Federal de Alagoas, com quem Lyra já havia trabalhado no desenvolvimento de soluções baseadas em IA para cirurgia refrativa, o oftalmologista contactou para o projeto um dos maiores especialistas em Física Óptica no Brasil, o pesquisador Davies William de Lima Monteiro, com doutorado em Óptica na Holanda, que indicou outros dois pesquisadores para integrar o time de desenvolvimento da nova lente. “O diferencial que tornou possível o desenvolvimento da lente foi exatamente esse trabalho integrado de pesquisadores de diversos campos com foco em um produto que solucionasse queixas reais dos nossos pacientes no consultório”, diz o médico cirurgião João Marcelo Lyra, explicando que os especialistas em Computação do desenvolvimento da lente chegaram a fazer cursos de especialização em design de sistemas ópticos para desenvolver algoritmos que simulasse os melhores resultados.
Ainda de acordo com Lyra, entre a concepção do projeto, em 2019, até os primeiros estudos de desenvolvimento e protótipos, entre 2020 e 2021, em plena pandemia, os desafios tecnológicos tanto no campo óptico quanto no campo da computação quase levaram o grupo a interromper o projeto. “Os primeiros modelos não atingiram os resultados esperados e precisamos, no final de 2021, reavaliar tudo o que havíamos realizado para atingir nossa meta de desenvolver uma lente que fosse capaz tanto de reduzir os halos e outros efeitos indesejados, quanto tornar o paciente menos dependente do óculos para enxergar diferentes distâncias”, diz o oftalmologista.
Com novos ajustes no design da lente que melhoraram a neuroadaptação (capacidade do cérebro rapidamente de se ajustar ao novo dispositivo óptico) e ampliaram o corredor de visão entre diferentes distâncias, o próximo passo foi produzir os primeiros protótipos no Brasil em contrato com fabricantes em Minas Gerais, Estado que concentra um dos centros de Oftalmologia de maior prestígio no país e na América Latina. Não é por acaso que em Belo Horizonte, por exemplo, estão sediados os centros de pesquisa e de desenvolvimento na área de multinacionais como a britânica Rayner, que mostrou interesse pela nova tecnologia principalmente após os primeiros resultados bem-sucedidos de implantação da nova lente em pacientes em 2022.
No mesmo ano, a Rayner decidiu apostar na nova tecnologia desenvolvida no Brasil não apenas para ampliar sua participação no mercado global do setor (com implantação estimada de cerca de 30 milhões de lentes intraoculares anualmente em todo o mundo), como também para ampliar seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento na América Latina.